choque de gestão

Sunday, December 23, 2007

Ex-mulher, ex-fumante

Olhou os dois ali sentados e pela primeira vez em três meses o folêgo de recém-nascido, de um pulmão em recuperação após dez anos de fumo, lhe faltou. Olhou, encarou-os sem ser vista e pôde notar que eles, sorridentes, pareciam impunes, libertos.

Ficou ali, parada, atrás do balcão e do vai-e-vém dos garçons, sem saber se entrava mais no restaurante ou se voltava para a calçada. Não conseguiu decidir. Notou que as batidas do seu coração se tornavam mais aceleradas e fortes, como se todos ali pudessem ouvir as pancadas internas que tomavam conta do seu corpo. Sentia a saliva em sua boca secar, as mãos tremendo, as pernas como se não fossem suas. Ficou ali, parada, os olhos arregalados.

Viu a mão de Roberto se levantar em direção ao rosto dela, para tirar um fio de cabelo que insistia em ficar perto da boca, grudando no batom vermelho. Se encheu de uma satisfação mórbida ao conferir que ela era branquela, magra e de cabelos longos e escorridos, exatamente como tinha imaginado tantas vezes. Sabia que era atriz e desconhecia todo o resto, incluindo o nome. Era a primeira vez que o via com outra mulher.

Procurou um cigarro na bolsa grande, cheia de papéis de bala e de chocolate, apalpou as chaves, a carteira, o celular, a pasta de dente e só então se lembrou que há três meses não fumava. Respirou fundo e pôs na boca um chiclete de embalagem toda corroída pela agressividade dos outros objetos dentro da bolsa. Mascou tão forte que mordeu a ponta da língua e seus olhos se encheram de lágrimas, de uma dor aguda mas ligeira.

Amanda notava que a tremedeira estava dando lugar a um suor que saía do corpo todo. Sem tirar os olhos da mesa, viu o garçom chegar com a conta. Roberto, então, sacou a carteira do bolso e guardou o cartão na capa preta de couro que abrigava a conta. Assinou o recibo e levantou primeiro que ela, que apertava a bituca de cigarro contra o fundo do cinzeiro. Eram da mesma altura -- ela talvez escondesse uma estatura menor com o salto da sandália plataforma que estava usando.

Retomando a autonomia das próprias pernas, Amanda se afastou da entrada do restaurante. Ficou escondida atrás do biombo que protegia os dois banheiros para vê-los passar. Viu quando ela ajeitou a bolsa de crochê branca no ombro direito e soltou uma risada ruidosa e relaxada depois de ele lhe falar ao ouvido. Antes de eles deixarem a cantina, só teve olhos para a mão direita dele, que, num movimento lento e preciso, envolvia a cintura fina dela para se esconder atrás da bolsa.

Quando teve certeza de que não voltariam, Amanda entrou de vez no restaurante e, antes mesmo de o garçom se dirigir a ela, sentou na mesa abandonada por Roberto. Lembrou da mão dele na cintura dela, sinal, para ela, da intimidade tranqüila que os dois dividiam e que outrora fora sua. Tirou o chiclete da boca e o depositou no cinzeiro, que se transformou numa bolinha branca envolta por uma poeira cinza. Pegou a bituca suja com o batom vermelho, desamassou e acendeu, para se servir de duas tragadas já com gosto do filtro amarelo e amassado. Só então deu ouvidos ao garçom: -- Uma vodka com gelo e um Marlboro Lights, por favor.