choque de gestão

Thursday, May 31, 2007

Meia-calça de Meio Amor

Amparo girou a chave, deixou as malas no chão e, antes mesmo de fechar a porta atrás dele, soube, teve certeza do que ouviria. Havia muitos meses que ele imaginava a cena e o diálogo. Mas de alguma forma torcia para que o dia não chegasse. Torcia e nada mais, era a acusação freqüente de Rafaela.

-- Eu já sei o que você vai me dizer, falou Amparo, ainda em pé.

E assim começaram a conversa, a última. Ela se engasgando, se explicando, em lágrimas. Da agonia, foi ao alívio em horas. Ele sempre escorando a cabeça nas mãos. Da contrariedade, foi ao conformismo em minutos.

Passaram a noite em claro _ela no quarto, ele na sala. Sem discussões, sem ataques, como sempre havia sido. Uma civilidade incomum ao amor e compatível com a falta dele.

Acordaram da noite não dormida. Rafaela agradeceu baixinho por ter de trabalhar tão cedo. Se arrumou na manhã fria de maio. Sem pensar, vestiu preto, enrolou um cachecol no pescoço e pôs um óculos de sol. Ao entrar na sala, deu de cara com Amparo, ainda sentado, ainda olhando o porta-retrato com a foto dos dois.

-- Você já vai?
-- Já. Preciso chegar lá umas sete.
-- Ah...
-- Posso passar hoje mesmo para pegar umas coisas?
-- Pode. Eu vou sair.
-- ...
-- Sua meia está desfiada.
-- Eu sei. Obrigada.

Antes de sair, Rafaela ainda conferiu se tudo o que precisava estava dentro da bolsa.

Thursday, May 17, 2007

Operação Eco

Outro escândalo envolvendo políticos, licitações, nosso dinheiro. Mais um, não passa disso. Saudades do papa? Do Bush? Não exatamente. Mas é realmente muito desalentador trabalhar na cobertura dessas operações da Polícia Federal.
Primeiro: elas não são mais novidades. No governo Lula, as ações de nomes engraçadinhos se multiplicaram, o que dá a SENSAÇÃO de que a polícia está mais ágil e os corruptos, mais cercados. Em partes. Pode até ser que a PF esteja fazendo seu trabalho mais intensamente, mirando em todos os partidos, redutos, crimes. Acontece que o Judiciário é ineficaz e lento. E tudo acaba ficando na mesma.
Todos ficarão presos por cinco dias (prisão temporária), poucos terão prisão preventiva decretada. Os malheiros da vida obterão habeas corpus com a mesma facilidade de se comprar pão francês. Os jornais e as TVs vão estampar fotos dos envolvidos e dos envolvidos com os envolvidos. Vão publicar o "outro lado". Os repórteres vão disputar os grampos vazados pela própria PF _diálogos revoltantes. O Ministério Público vai oferecer algumas denúncias. Por algumas semanas, se falará disso intensamente. E só.
Ninguém será julgado e condenado nos próximos anos. Ou é isso o que está acontecendo com os sanguessugas _e eu não sei? Sem falar no mensalão, que só fez ajudar o Lollo, aparentemente. E, mais recentemente, a Operação Hurricane, gravíssima, envolvendo o próprio Judiciário e seus juízes mal-intencionados. Deu em algo? Não. E ninguém fala mais nisso. Até porque os holofotes já foram para outra operação.
É muito desanimador ser uma jornalista solteira, com febre e em inferno astral neste país.

Wednesday, May 09, 2007

As grandes coberturas

Foi quando eu estava quase desistindo do jornalismo impresso diário que duas grandes coberturas vieram me recativar. Digo "desistindo" e já corrijo meu exagero _não estava desistindo, estava só entediada com a falta de notícias ou com o excesso de manchetes policiais. Mas aí vieram a morte do meu empregador supremo e a visita do Santo Padre e tudo voltou a fazer sentido (por mais alguns meses).
O assunto, na verdade, pouco importa. Pode ser uma OP monstruosa ou igreja, um escândalo ou a visita do Bush, a eleição presidencial ou só para a Câmara mesmo. O que interessa é a gritaria.
Quando o assunto é previsto, a movimentação começa meses antes. É pensar no caderno especial, no tamanho dele, na equipe que vai fazê-lo, nas credenciais, em planejar a cobertura nos dias do tal acontecimento; é participar no que, de fato, vai ser lido dentro e fora da Redação.
Sem planejamento ou não, quando estoura o caos é certo. São muitas pessoas envolvidas, muitas páginas a preencher, muitas fotos para escolher, muitas ordens a seguir, muitos chefes para obedecer, muitos detalhes que podem ser fatais.
O começo cabe ao pauteiro e aos repórteres. O primeiro delega e combina, os demais deveriam voltar com histórias _o que nem sempre acontece. Dois colam no presidente, outros dois, no papa, um checa o trânsito; tem que ter um para acompanhar o público, outro para ver a cobertura da TV, um para bastidores, curiosidades _"O sapato é Prada ou não?"_, repercussão com tudo o que se mova.
Na Redação, cada um cuida de uma coisa. Os infográficos têm que ser logo pensados e repassados à Editoria de Arte. Os artigos precisam ser encomendados, medidos e, quando preciso, cortados, sempre de acordo com quem assina. O mesmo é feito com os colunistas fixos. O multímidia (coisa meio provinciana, aliás) sempre tá nas grandes coberturas, assim como as íntegras dos discursos. E são metros e metros de textos, que precisam ser lidos, fundidos, cortados, titulados, corrigidos e reescritos. Fotos que precisam de legendas descritivas e sem repetições, evitando o clássico "O tenista brasileiro Gustavo Kuerten segura sua raquete em Paris". Aliás, o comum é ser criado o nobre cargo de "editor de legendas". Os chefes se multiplicam, assim como as ordens, nem sempre em consonância. Cada um pede uma coisa, e é preciso se defender do excesso de tarefas, porque se não fechar por causa da sua arte você vai ouvir gritos, quase nunca publicáveis. Tem o lidão, as notinhas, as estrelinhas, a "memória", o "saiba mais", a "análise", o navegador, o chapéu centralizado no alto da página _tudo que precisa ser pensado.
Tudo _tudo mesmo_ tem de passar pelo nobre ato de "desembargar", a maior chatice de qualquer grande cobertura. É quando um texto precisa ser lido por toda a hierarquia do jornal, do chefe imediato ao chefe supremo, que dá "ok" (ou não) e faz a ordem voltar ao subordinado mínimo. Esse percurso pode demorar horas.
No meio de tudo isso, vem a parte predileta: os comentários. São variados, maldosos, plurais e apartidários. Sai pra todo lado: do presidente ao rabino, do governador (sim, do governador também!) ao apresentador de TV, do senador lesadão a alguém do jornal. Adoraria contar algumas aqui, mas elas ficam restritas às mesas de bar. Por enquanto.